modo de preparo...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Sobre UM Silêncio

Incomoda..
...e diz muito.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

O Mendigo

Este texto é do início do ano passado.

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Outro dia estava andando na calçada, segurando no braço meu grande fichário azul, quando vi encostado no muro um trapo bege sujo num papelão.

— Vai prestar?

Assustei-me. O trapo era um mendigo, muito velho, muito cansado. Ele olhava para mim, aguardando uma resposta. Vi que seus olhos eram brilhantes e não me lembro da cor deles — talvez castanhos, talvez azuis —, mas sei que naquele momento senti uma aflição tão grande que tive vontade de correr, sumir dali. Minhas pernas não me obedeceram e, pelo contrário, paralizaram-se.

— Você deve estar no terceiro ano. Não?

— Estou — disse, engolindo saliva.

— É, este é o terceiro ano que você passa por esta mesma calçada para ir até o colégio. Em me lembro de sua fisionomia. Eu moro aqui.

— Ah... Sim. — disse eu, sem palavras. Ele abriu os braços, mostrando o seu lar, e percebi que a envergadura de seus braços media mais que seu papelão de casa. Nunca o havia percebido, durante todos os anos que passei por ali. Cobria-se com jornais para espantar o frio. Cutucou alguma coisa de sua barba preta.

— Piolhos, sabe como é.

Acenei com a cabeça, e ele continuou a coçar.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

— Ah... — disse eu, tomando coragem para finalmente soltar as palavras. — Para que eu vou prestar, o senhor havia me perguntado? Ainda não me decidi, para falar a verdade. Eu gosto da área de humanas, então talvez direito ou jornalismo possa ser um bom curso...

— Não.

Ele olhou para cima, para o céu, e murmurou uma música desconexa. Ficou assim durante alguns segundos.

— Você não acha... Senhor... Que eu deveria fazer estes cursos?

— Não foi esta a minha pergunta — ele falou simplesmente, voltando a olhar para mim. — E não me chame de senhor. Isso faz parecer que sou Deus.

Ele deu-me um sorriso de poucos dentes amarelos. Coçou com as mãos seus cabelos, talvez para tirar outros piolhos, e então disse:

— João Paulo, não quero saber que curso você vai fazer na universidade.

”Ele sabe o meu nome?”, pensei espantado.

— Está escrito no seu uniforme — ele disse, apontando para o nome bordado em azul na camisa. — Quero saber se você vai prestar. Você deve estar percebendo que eu não presto. Eu sim sou um completo imprestável. Não faço nada. Mendigo o dia inteiro. Como nos lixos. Durmo nas ruas. Não tenho emprego. Acho muito injusto isso tudo, também. Sou um infeliz, um abandonado, um sem família, um sem teto, um sem porcaria nenhuma. Ninguém me ajuda. Ninguém me dá nada, muito menos empresta. Minhas esperanças são os outros, e os outros querem saber deles mesmos, não estão nem aí para mim. E não me olhe com esse olhar de pena, esse olhar idiota, que não faz nada, não dá comida, não compra cobertor, não dá alegria, carinho, tempo, somente joga na nossa cara que você não queria estar no meu lugar.

Ouvi um sinal gritante, contínuo, num único tom. Vinha do meu colégio. A aula estava prestes a começar.

— Vai — ele disse, cansado. — Vai estudar. Vai estudar, vai prestar um curso de humanas, como você disse. Depois, arranje um emprego. Ganhe bem, compre coisas! Gaste com você, com sua família, enriqueça e seja feliz! E depois, mais velho e mais sábio, olhe para trás, veja todo o seu passado de realizações, e se descubra tão imprestável quanto eu.

Ele desviou o olhar. Remexeu-se dentro dos jornais, deitou-se, e dormiu. Não consegui dizer nada, por isso rumei ao colégio.

Nunca mais o vi.